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O projeto

Chamo de “caso” àquele contato de alma que o próprio Pessoa passou toda a vida a esconder/revelar. O meu caso com o poeta começou no fim dos anos 1960, quando ouvi pela primeira vez Caetano Veloso cantando É proibido proibir, uma música / atitude libertária que se antepunha frontalmente ao regime militar que oprimia nossa juventude. No meio da sua interpretação antológica e contrariando as palavras de ordem ortodoxas da resistência política tradicional, Caetano declamava umas palavras estranhas que se alojaram no meu inconsciente como premissas de um tempo novo, inevitável. Corri atrás dessas palavras e vim a saber, estarrecido, que faziam parte de um conjunto de poemas de um poeta português. Comprei o livro, as obras então completas (a edição é de 1960), da Editora Aguilar. O poema era D. Sebastião, terceira parte da Mensagem, O Encoberto. A partir daí uma paixão súbita e definitiva me incendiou o coração e nunca mais parei de ler e amar Fernando Pessoa, seu autor. Com o  passar do tempo, cheio de pudor e cumplicidade oculta, fui-me embebedando daquela solidão imensa até me ver irremediavelmente capturado pelo delírio místico de Mensagem. Nesse livro, Fernando Pessoa traduz em linguagem metafórica uma antiga aspiração do ser humano, um sentimento obscuro de que existe um mundo interior a ser descoberto, à semelhança dos descobrimentos portugueses. Essa sensação de intervalo e essa ânsia doída contida nos versos do poeta refletem aquilo que não temos e não vemos, mas desejamos e queremos: navegar por dentro, rumo ao lugar encoberto onde reina o mais legítimo de nós. Essa atmosfera messiânica da Mensagem acolhera inteiramente a minha alma ávida de oculto e assim me deixei levar. Mas o espírito argonauta era pouco, e a forma que eu encontrei para comungar essa paixão pela palavra do poeta foi na música. Musicar os poemas da Mensagem foi um desdobramento quase natural daquele meu primeiro contato tantos anos atrás. Expressar esse sentimento abstrato de pertencimento absoluto a uma “causa” foi a tarefa que o destino me impôs, e as músicas da Mensagem – sem medo, sem mistificação – começaram a descer como molduras sobre telas e, ao cumpriram apenas a função de integrar-se a elas, integram-me a ele e ao “seu” projeto.

Meu “caso” com Fernando Pessoa
Texto escrito por André Luiz Oliveira para o catálogo da exposição “Fernando Pessoa, Plural como o Universo”, realizada pela Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, Portugal.

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