Bate-papo

André Luiz, artista de alma dupla.

Ele vive duas personalidades: a de cineasta e de músico. Qual delas o define? Na conversa a seguir, André Luiz fala um pouco desses dois aspectos complementares da sua arte. Sem conflito, ele navega por fotogramas e notas musicais criando obras definitivas como o filme cult Meteorango Kid, o Heroi Intergalático, e agora essa parceria com Fernando Pessoa.

Músico de tantos instrumentos, André Luiz foi, lentamente, entre filmes, erguendo a Mensagem que durante décadas alimentou sua alma musical.

André, o cineasta foi iniciado, ainda adolescente, no ateliê do artista Mário Cravo Junior, e o músico? Iniciou-se onde?O que disparou essa paixão por Fernando Pessoa? Como tudo começou? Como conheceu Fernando Pessoa? E o poema Mensagem?A sua música assumiu esse papel?Como são seus outros personagens? Como é o cineasta?Mas o cineasta já apareceu assim não é, na genialidade do Meteorango?Fazendo agora uma retrospectiva, quase 30 anos depois do primeiro Mensagem, você enxerga diferença entre você daquela época e você de hoje? Ou vê tudo da mesma forma?Parece que a Mensagem vai se transformando junto com a sua capacidade de compreensãoDepois desse tempo todo e essa compreensão gradativa, você olha para trás hoje e vê também uma diferença na música de antes e de agora?Elas então não refletem essa mudança na compreensão?Você teve ainda que compor para o Mensagem 3? Foi mais complicado?Você diria que as músicas têm mais a ver com você ou com a Mensagem? Essas músicas são muito diferentes das músicas que você faz fora desse projeto enquanto estilo.Você acha que a complexidade da sua música na Mensagem é por causa da complexidade dos poemas? Você se acha complexo?Mas como é o personagem músico desses outros projetos, como o do África Brasil, do ser fã?Tem mais um personagem seu que é o auxiliar de musicoterapia. Como é isso?Como assim?Por que você acha que tanta gente topou se envolver no projeto?Como são os shows do mensagem?E os Bandarras ainda existem ?Vocês apresentaram um vídeo da Mensagem em Portugal?Quais são seus agradecimentos?Alguma mensagem?
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Essa iniciação é simbólica porque cheguei ao ateliê de Mário aos 17 anos e fiquei deslumbrado como a arte se manifestava ali. Mas não tem muito a ver com o cineasta não, pois já mexia com fotografia e filmes caseiros em 16 mm. O despertar para a música foi mais cedo, veio da família. A memória mais marcante que tenho com relação isso foi quando, no rádio, ouvi pela primeira vez João Gilberto cantando Chega de Saudade. Fiquei absolutamente encantado, e meu mundo mudou a partir daquele momento. Eu tinha 10 ou 11 anos de idade, porque estava estudando para prestar segunda época no primeiro ano do curso de admissão. Foi uma epifania o que ocorreu ali, e o meu antigo mundo “nelsongonçalveano” caiu por terra.

A forma como conheci Fernando Pessoa e o poema MENSAGEM foi num momento muito rico e conturbado da minha vida. O elemento disparador foi quando ouvi a música de Caetano Veloso É Proibido Proibir, que era um hino convocatório para nós, pós-adolescentes, que estávamos naquele momento de virada de costumes, brigando contra a ditadura militar, querendo mudar o mundo, aquela coisa toda, drogas etc. A música dizia “…derrubar as prateleiras, as estantes, as estátuas, louças, livros sim…”, e, no meio da música, as guitarras começavam a fazer um fundo caótico, e Caetano declama o poema Dom Sebastião: “Caí no areal e na hora adversa que Deus concede aos seus para o intervalo que esteja a alma imersa em sonhos que são Deus…”.

O estranho poema declamado daquela maneira, por um ídolo da minha geração, dentro daquela música, naquele momento, tudo isso contribuiu para chacoalhar toda a minha frágil início de existência! Fui procurar saber quem era poeta e foi aí que conheci Fernando Pessoa.

Não existe um propósito racional para fazer essas músicas, nunca existiu – Ah! Vou musicar Fernando Pessoa, grande poeta, porque gosto… Não existiu isso! As coisas foram acontecendo incontrolavelmente por uma questão de necessidade absoluta, missão, obrigação e uma afinidade constrangedora com a forma de ele escrever, uma admiração absurda beirando a inveja e o encantamento. Assim fui alimentando uma paixão enorme pela vida e obra dele, atordoado pelo reconhecimento de como ele falava tão profundamente de mim mesmo.

 

Sim, de intermediária! Em vez de eu tentar interpretar, declamar, ser um pessoano profissional, escrever livros sobre ele como os grandes pessoanos fizeram e fazem, ou realizar um filme, não me conformei com isso de ser apenas um admirador, queria mais, e a forma que encontrei para lidar com essa situação de paixão absoluta foi a música.

A música foi a saída, ou a porta entrada, que possibilitou esse encontro de almas. Isso ficou claro para mim. Se não tivesse havido essa instância inspiradora, se quiser posso chamar de “providência divina”, como diria o próprio Pessoa, não sei o que seria de mim. E a minha onda é com a Mensagem. Nunca, jamais passou pela minha cabeça fazer música para Álvaro de Campos nem Caieiro, nem Ricardo Reis, nunca, nem de longe me passou essa ideia. Então, além da excelência da poesia expressa na Mensagem, tem a ver também com o seu conteúdo, no qual mergulho e viajo numa ancestralidade mística que atende aos meus anseios gnósticos. Acho mesmo que essa paixão incontrolável criou o personagem músico para fazer a versão musicada da Mensagem.

O cineasta é arrogante, inquieto, presunçoso. Como ele sempre foi iconoclasta, desde que começou a filmar, está sempre buscando fazer algo diferente, seja na linguagem, seja no conteúdo, por isso filmar ficou em segundo plano, porque ele está sempre querendo fazer coisas novas. O músico não, o músico está inteiro na sua originalidade natural, com uma timbragem emocional e humildade, que o cineasta não tem. Como sou do signo de Aquário e o ascendente em Peixes, digamos que o cineasta é aquariano, e o músico, pisciano.

O músico tem uma noção dos limites da sua capacidade de expressar musicalmente aquilo que sente. O cineasta está sempre querendo inovar, querendo abarcar tudo num só discurso, quer inventar algo diferente, contar de uma forma diferente, então arrisca mais. O músico é mais irresponsável nesse sentido, é mais sentimento, pega o violão e vai. No caso do músico citarista já é diferente. Ele é o que exercita a disciplina necessária do estudo diário como forma de meditar, orar ou mesmo somente estudar e se congratular silenciosamente com pequenos passos. Enfim, é uma penca de personagens que lido diariamente, cada um no seu estilo. Veja a identificação com o poeta, ele também lidava com os muitos personagens que o habitava.

Pois é, quando se está na contramão, é sempre visto como genial. No fundo, é só uma questão de coragem, um pouco de talento e a vontade determinada de quebrar as réguas vigentes.

Sabia que durante toda a filmagem de Meteorango, Fernando Pessoa estava na cabeceira?

Não, eu enxergo muito diferente. Quando eu comecei a curtir o livro, eu não sabia nada do conteúdo da Mensagem, não alcançava e me inquietava, queria saber tudo. Não que eu saiba exatamente hoje (risos) alguma coisa, mas eu sabia muito menos do que ele queria dizer com a MENSAGEM.

Mas a paixão continua igual, não aumentou nem diminuiu. A questão emocional com os poemas continua mexendo comigo até hoje pela excelência da escrita, mas, a cada dia, conforme os anos estão passando, vejo que fui descobrindo uma coisinha a mais, numa ideia aqui, uma forma ali, que ele estava falando sempre dele mesmo, dos seus sonhos e frustrações, da sociedade portuguesa, do ser humano de uma maneira geral.

Os personagens ali alinhados são uma projeção dele mesmo. Então fui descobrindo esses personagens históricos e vendo como ele os sincronizou com os seus próprios desejos e aspirações mais elevadas. Vi como são poucos os gênios que conseguem essa proeza. Ele foi tudo o tempo todo: reis, navegadores, profetas, todos os personagens da Mensagem. Antes eu estava embarcado numa viagem em que ele estava profetizando alguma coisa e que a Mensagem tinha um endereço oculto, esotérico com relação ao Brasil, a existência… Não vejo mais assim e gosto de espiar essa possibilidade não identificada dela, como ele a fez. Com relação ao meu trabalho musical e o conteúdo da Mensagem, penso assim: se for, é, tanto melhor, se não for é também porque o fiz. Como ele próprio diz no genial poema O Conde D. Henrique: “Que farei eu com essa espada?” Ergueste-a, e fez-se. É um homem que expressa seu desejo de ver uma comunhão fraterna entre os seres humanos e também um grande poeta, uma pessoa simples buscando se expressar com o recurso que tem: a palavra.

Essa forma de olhar me deu certo conforto porque antigamente eu queria que isso tivesse um conteúdo para além do que eu conseguia compreender! (Risos)

Existirão muitas interpretações da Mensagem e da Mensagem musicada inclusive, como já existem muitas da Mensagem escrita. E acho que com esse trabalho empresto uma emocionalidade brasileira e deixo também muitas pistas e caminhos. É minha modesta contribuição para “constituição” dessa grande utopia…

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Fernando Pessoa

Exato! Isso que é incrível! A modernidade do livro. Nesse sentido, quem tem uma participação muito importante nos 30 anos do Projeto Mensagem, desde o seu início, é o poeta e professor Carlos Felipe Moisés. Esse é um autêntico pessoano que tem uma visão do livro muito particular, mesmo porque foi o responsável por algumas edições brasileiras. Ele sempre faz questão de dizer que é um materialista agnóstico, um homem que tem um sistema de crenças restrito, não é um místico, mas tem uma belíssima leitura da Mensagem, consistente e muito ampla. Talvez a mais ampla que conheço.

Boa pergunta! Não, não vejo diferença, embora possa atribuir certa preferência à Mensagem 1 por ser o primeiro, pela novidade, pela emoção da surpresa de constatar a minha capacidade de expressar o que estava sentindo ao ler aquela maravilha toda. Quando fui surpreendido por essa embriaguez de musicalidade associada à Mensagem, quando as músicas surgiram espontaneamente, tive menos tempo de elaborar, e tudo ficou mais interessante. Elas saíram com um jato… Foi um momento incrível na minha vida. Guardadas as proporções, meu “dia triunfal”, confessado por Pessoa quando nasceu nele o seu Mestre Caeiro. Mas, se eu tentar nomear qual gosto mais, ou qual a melhor, não consigo. Gosto muito de Prece. Depois de um tempo, digo não, prefiro essa outra! (Risos). Algumas gosto mais de cantar, outras menos, mas acho que todas têm o mesmo timbre e qualidade.

Não, não refletem. Parece que elas estavam prontas esperando eu ir amadurecendo com a idade, afinal foram 30 anos desde a primeira Mensagem até hoje. Outra coisa, muitas já estavam prontas desde a primeira Mensagem, mas, naquela época, era LP, e só poderiam ser gravadas 12 faixas. Quando fizemos um show no Memorial da América Latina em 1991, Ná Ozzetti já cantou o Monstrengo, e eu cantei O dos Castelos. As duas músicas só foram gravadas agora, na MENSAGEM 3, 30 anos depois.

André Luiz em Lisboa

André Luiz em Lisboa

Foi mais complicado, porque me vi obrigado a fazer um CD com as 19 músicas restantes para completar o livro e faltavam compor umas três ou quatro, não lembro direito. Mas me lembro perfeitamente de que a última foi Dom Sebastião, aquela mesma do poema declamado por Caetano: “Caí no areal e na hora adversa…”. Foi difícil compor essa música porque a declamação ainda ressoava no meu inconsciente, e eu já estava satisfeito de tê-la declamado na introdução da música D. Sebastião, Rei de Portugal, que cantei na Mensagem 2. Declamei esse poema exatamente para me livrar da declamação de Caetano em É proibido proibir e realmente estava me sentindo livre. Quando surgiu a possibilidade concreta de realizar a Mensagem 3, tive que fazer uma música para o livro não ficar incompleto, por isso foi a última música composta.

Na verdade o livro Mensagem é um grande quebra-cabeças. Seguir encaixando as peças, descobrindo suas brincadeiras, é um processo de autoconhecimento: uma chama D. Sebastião, e a outra, Dom Sebastião, rei de Portugal. Um é o místico, é o D. Sebastião utópico, o Desejado, encarnação da profecia gnóstica ibérica, na visão profética do Bandarra, de Antônio Vieira, é o que caiu temporariamente no areal simbólico do Nevoeiro português, da nossa existência ordinária. O outro é o rei histórico, louco, que aos 19 anos levou 12 mil nobres portugueses para uma guerra suicida no Marrocos e desapareceu.

Não é que elas não tenham a ver comigo, são uma parte de mim, mas não a totalidade, porque a totalidade tem a África, a Bahia e a Índia trazida pelos portugueses para o Brasil.

Então, um lado meu é amalgamado a esse sentimento nostálgico e melancólico dos poemas, ao clima místico da Mensagem. Mas não me representa inteiramente de jeito nenhum. Há uma música minha, que fala sobre a minha interpretação da Mensagem e que Sandra de Sá gravou no meu LP África Brasil, chamada O Quinto Império. Ela começa num fado que vira samba e diz assim:

Cessava o que fora a divina profecia (que é a Mensagem)
Quando na praia descobriu-se
Que era verdade o que não existia
E a promessa se cumpriu
Salvador, onde vieram dar os filhos do Senhor
Frutos do desejo de realizar
O Império impossível
Um dia que chegaram no lugar
Que não havia mas agora há
Uma gente que não sabe rezar, faz amor, batuca
Salvador
Onde vieram dar os filhos da ventura
Filhos do desejo de ser feliz (olha a tristeza portuguesa aí)
A navegar na noite escura
Um dia que chegaram no lugar
Que não havia mas agora há
Uma ilha de calor e luz
A Bahia Orixás
Salvador
Onde vieram dar os filhos da procela
Frutos do desejo de se libertar
Da saudade e em nome dela
Um dia que chegaram no lugar
Que não havia mas agora há
Preto velho lusitano
Na avenida de cocar

Essa música que chamo de Quinto Império define o que penso da Mensagem. É uma coisa que não é mais, mas continua sendo… Fernando Pessoa é o rei do paradoxo! Ele desafirma para afirmar a mesma coisa num nível mais elevado. Criou personagens para negar outros. Caeiro nega Álvaro de Campos, e assim ele vem recriando o Quinto Império, negando-o.

O quinto império

Não, não acho, mas eu atribuo essa “complexidade” das músicas a certa ingenuidade musical minha, porque nunca estudei música, não sou um compositor de carreira que vive da música. Sou um compositor bissexto, sou um cineasta também bissexto, então atribuo um pouco disso a essa inquietação do buscador. Foi um grande músico português, Sergio Godinho, que me falou pela primeira vez dessa questão da ingenuidade. “… você fez isso porque é brasileiro e um músico ingênuo. Nós aqui, de Portugal, nunca tivemos coragem de musicar Fernando Pessoa”. Então é isso, tenho coragem de arriscar umas melodias mais complexas, mas não é proposital, é totalmente intuitivo, instintivo para que fique de acordo com o que estou sentindo ao ler o poema e intuir musicalmente o que ele está me dizendo, mesmo sem compreendê-lo.

Tive a sorte de trabalhar com arranjadores como Francis Hime, Leandro Braga, Cláudio Vinícius Fróes, Kátia de Almeida, Joaquim França e excelentes músicos, sem falar nos intérpretes.

Não penso sobre isso, mas acho que ele está sempre tentando expressar algo muito forte em mim, parecido com o que aconteceu com a MENSAGEM. Existe um desejo, inclusive, de fazer algo diferenciado da Mensagem, algo que represente esses outros personagens sentimentais. Quando faço as minhas letras, a música já vem com um sentimento envolvido. O fato é que a Mensagem se sobressaiu e se tornou mais conhecida por causa de Fernando Pessoa e dos intérpretes famosos. Foi criada certa mística em torno do LP Mensagem porque esgotou logo, pois nele estavam muitas estrelas de primeira grandeza e Pessoa como padrinho. Mas os outros discos que você citou são do mesmo nível. Muita gente não acreditou quando viu que aquele cineasta ALO havia feito esse disco.

Eu tive experiências interessantes sobre isso. Pessoas para as quais eu mostrava e falava do disco, e elas diziam:

Ah! Conheço, é lindo, coisa e tal… E não acreditavam que eu havia feito.

Mas meu nome está aqui!!! Dizia aflito!

Mas não tinha jeito. Era difícil de acreditar pelo tamanho das superestrelas da MPB. As pessoas tinham muita dificuldade de aceitar que eu era o autor… Elas simplesmente me deletavam. Eu dizia: Sou eu! Elas respondiam: Você produziu o disco, bem produzido, bacana! Eu dizia não! Eu fiz as músicas!Sim .. mas como, você não é conhecido nem nada? Eu tive a ideia, eu musiquei, eu chamei todo mundo pra cantar!

Aí que caía a ficha, com dificuldade (risos). Isso me aconteceu várias vezes!

Meus colegas cineastas têm muita dificuldade em me associar com o compositor. O carimbo de cineasta é forte no meio, e eles não se interessam pela minha música, com raras exceções. Um poeta baiano, meu amigo James Martins, uma vez me disse que, antes de me conhecer pessoalmente, achava que o autor das músicas da Mensagem era algum músico português erudito ou o pseudônimo de alguém com o meu nome, pois não conseguia encaixar o cineasta, autor de Meteorango, com o LP Mensagem. Seu queixo caiu quando soube que o cineasta é o músico na Mensagem.

Acho que é o mais humano, digno, querido. A oportunidade de estar, tocar, filmar, brincar com crianças especiais é um presente, um tesouro que a minha mulher, Clarisse Prestes, que é musicoterapeuta, me deu. Esse é o meu público, e, com eles, me sinto muitíssimo à vontade.

Sou comusicoterapeuta num trabalho com crianças dentro do espectro do autismo. Só isso, já está de bom tamanho para neutralizar a inflação do ego do personagem cineasta. Adoro esse trabalho. Os ganhos terapêuticos e conquistas nos chegam homeopaticamente e por intermédio do retorno dos pais das crianças. Muitos conseguem atingir a fala, chegar ao banheiro por interferência clara do trabalho clínico, assim como alguma socialização e outras conquistas que nos deixam em estado de gratidão infinita. A musicoterapia é um fortíssimo canal de comunicação e liberação.

http://www.youtube.com/user/Musicoterapiautismo/videos

Acho que a música conseguiu, de alguma maneira, chegar perto dos poemas e, às vezes, ao mesmo nível. Se elas ficassem abaixo, as pessoas poderiam dizer: cara, adoro Fernando Pessoa, mas essa música… Isso nunca aconteceu. Os artistas que convidei e não quiseram participar foram gentis e não me disseram nada. Fiquei sem saber se foi por causa da música, por causa do empresário, se foi por causa do… sei lá o quê! Mas acho que eu tinha um projeto muito bom, que é Fernando Pessoa, uma ideia boa e umas músicas que estavam à altura dos poemas… E aí ficou fácil e só durou 30 anos. Uma prova que a música pesa é a responsabilidade de cada intérprete com sua imagem. Acontecia sempre assim.

– Quer participar do projeto FERNANDO PESSOA

– Quero mas mande a música!

E sempre quando mandava a música, a resposta era positiva, com raríssimas exceções.

Sou muito agradecido a todos os intérpretes, sem exceção. Há casos como o de Dulce Pontes, que participou da Mensagem 3. Ela gravou em Portugal em cima do nosso arranjo, sem a minha presença no estúdio, e, quando ouvi a gravação um tempo depois, chorei feito criança. E outras histórias incríveis como o convidado que desistiu um dia antes da gravação e por aí vai. São muitas histórias. Tudo nesse projeto foi muito intenso e emocionante. Obrigado, Dulce, pela sua entrega e grandeza! Mudei o jeito de cantar a música por causa dela! Eu acho que fui muito feliz com os intérpretes que escolhi, e a beleza do projeto vem muito disso.

É um presente inestimável ter esses intérpretes, essas pessoas cantando nesses três discos, realizados ao longo desses 30 anos. Costumo dizer que foi uma imensa travessia e uma perigosa travessura.

Uma nota negativa foi a retirada de Belchior da primeira Mensagem porque não conseguimos encontrá-lo para as assinaturas legais de cessão de direitos contratuais. Procuramos por ele por mais de um ano, e, entre encontros e desencontros, o fato é que depois de muita resistência, tive que regravar a música dele. Foi muito triste e doloroso para mim fazer essa operação no projeto original. Belchior é um velho amigo a quem admiro muito, e não queria que ele ficasse fora de algo que ele sempre esteve dentro e, para mim, estará sempre, por direito e afinidade.

  • Raquel Tavares e André Luiz

  • André Luiz e Gilberto Gil

 

Alguns anos após o lançamento MENSAGEM 1, fizemos um show no Memorial da América Latina, com a participação de Ná Ozzetti, Cida Moreira, Gloria de Lurdes e uma banda grande comandada pelo maestro Décio Cascapera.

Vim morar em Brasília em 1991 e aqui senti logo vontade de fazer alguma coisa com a Mensagem. Chamei o amigo baiano Nando, antigo morador da cidade que me ajudou a fazer uma mini e improvisada produção. Levamos um conhecido num barbeiro, cortamos o seu cabelo, botamos um bigode, arrumamos uma roupa num brechó, e numa tarde o filmei como Fernando Pessoa caminhando por Brasília. Algumas dessas imagens, filmadas com uma câmera Super VHS emprestada, estão no DVD MENSAGEM3 e na abertura dos shows até hoje.

Foi nessa época que começou minha grande parceria com Claudio Vinicius e a amizade com Ocelo Mendonça. Criamos o trio os Bandarra e fizemos o primeiro show Mensagem em Brasília, onde eu projetava as imagens de Fernando Pessoa que havia filmado. De lá pra cá, fizemos muitos shows. Ou só nós três, quando era coisa pequena, em universidade, bar (Vinicius, no teclado e viola caipira, Ocelo, no violoncelo, e eu, na voz e no violão). Fiz também em teatros, com Cida Moreira e Gloria de Lurdes, em Belo Horizonte, São Paulo, Sesc, e no lançamento da MENSAGEM 2 em 2003.

Sim! Tocamos sempre, e a última vez foi na Bienal do livro em Brasília em 2014. Agora, no mês de outubro/novembro, vamos fazer oito shows no Museu dos Correios. Vamos apresentar todas as 44 músicas/poemas do livro na sequência como foi publicado. Cada dia um show diferente, um desafio.

  • André Luiz e Vinicius

  • Vinicius, André e Ocelo – Os Bandarra

Na época, 1986, foi feito um vídeo com uma produtora de São Paulo. Um amigo tinha levado umas músicas da MENSAGEM 1 e mostrado ao presidente Sarney, que estava indo a Portugal com uma enorme comitiva de intelectuais, Jorge Amado, Celso Furtado, Ruth Escobar e outros. O vídeo foi exibido no horário nobre da televisão estatal portuguesa e virou um vídeo histórico.

É lamentável o que aconteceu depois, pois ele foi lançado sem a minha autorização, sem nenhuma comunicação, e fiquei muitíssimo magoado porque tinha me comprometido com os intérpretes que os avisaria de qualquer utilização comercial das imagens, pois eles haviam feito o trabalho sem cachê nenhum. Entrei na justiça com um pedido de reparação, eu e todos os intérpretes.

Depois compreendi que foi excesso de entusiasmo da produtora que, embora tivesse errado em não ter me avisado, ou mesmo, não ter me chamado para participar do projeto que me era tão caro. Se arvoraram a donos porque fizeram o vídeo quando o projeto era muito maior que o vídeo. Acabou que esse vídeo ficou guardado todos esses anos.

Não conseguimos colocar o vídeo no BAÚ da MENSAGEM, o que é uma pena, já que se tornou um vídeo histórico. Já passaram tantos anos, eu nem estou mais preocupado, não tenho mais mágoa nenhuma com essa história e tinha vontade até de encontrar as pessoas pra desfazer esse mal-estar que ficou e lançar de uma vez esse vídeo porque o público merece assisti-lo.

É um clipe de cada música cantada pelos intérpretes, todos jovens, 30 anos atrás. Até faço um apelo aqui às pessoas responsáveis. Dona Arlete e senhor Pedro, vamos botar isso na rua para as pessoas verem!

Não teria realizado esse projeto se não fosse a colaboração de muita gente, mas gostaria de destacar três pessoas que, de fato, sem elas o projeto não teria ido além da minha cabeça, da minha gaveta, do meu violão. Citarei por ordem de envolvimento e realização: Luna Alkalay, Eugênio Staub e Zero Freitas.

Luna Alkalay porque presenciou o início de tudo quando morávamos em Lisboa na década de 1970 e desde então sempre me encorajou a seguir em frente, participando diretamente da realização de todo o projeto como coordenadora geral dessa trilogia que estamos lançando agora.

Eugênio Staub, então presidente da Gradiente, foi o mais significativo no sentido concreto do termo porque patrocinou as duas primeiras Mensagens. Esse homem, que vi apenas três vezes – a primeira quando um amigo lhe apresentou o projeto Mensagem em 1985, a segunda no lançamento do projeto e a terceira quando em 2003, vinte e tantos anos depois do nosso último encontro, o reconheci no elevador do Ministério da Cultura, em Brasília, e ele me perguntou como estava o projeto Mensagem. Respondi a ele que continuava compondo músicas para os poemas do livro e tinha muita vontade de continuar a gravar. Ele olhou em meu olho e disse: – Vamos continuar! Eu perguntei surpreso: Como assim? Ele respondeu: – Vamos fazer! Aquilo é muito bom e é muito bonito!

Aí fizemos a MENSAGEM 2 e nunca mais o vi novamente! Tudo isso é consequência da vontade pessoal desse homem e, claro, do concurso do destino que nos colocou frente a frente no elevador do Ministério da Cultura naquela tarde triunfal – como diria Fernando Pessoa! Coincidência? Não sei direito, mas o Projeto Mensagem foi todo feito assim ao longo dos seus 30 anos de realização.

Quando esse Baú for lançado com a Mensagem 3, faço questão de sair daqui de Brasília e ir a SP entregar pessoalmente para ele dizendo: Ó você aqui ó! Tudo isso é consequência do seu gesto! Se não fosse você esse projeto talvez não existisse!

E, por fim, Zero Freitas que da mesma maneira informal de Staub disse mais ou menos assim para Luna Alkalay: – diga ao André para ele fazer a MENSAGEM 3 que eu pago. O projeto tem que ser feito! Foi fantástico! Além de patrocinar a gravação da Mensagem 3, que significava as últimas 19 músicas do livro, ele mandou fazer nova edição das duas primeiras Mensagens numa caixa especial, com as três juntas, ou seja toda a obra.

Sem a intervenção decisiva dessas três pessoas, que me deram a oportunidade e as condições financeiras ideais de gravar da maneira mais livre possível que eu pudesse conceber, estaria até hoje com esse projeto orbitando meu desejo, as músicas guardadas nas gavetas do tempo, como tenho muitas outras e projetos em estado de dormência. Sou eternamente grato aos três.

Não. Chega de Mensagem… 30 anos não são três dias. Até isso foi legal porque teve esse problema de tempo. Pessoa escreveu o primeiro poema em 1912, ele é de 1988. Tinha então 24 anos. Ele ficou de 1912 até 1934, um ano antes da sua morte, escrevendo um poema aqui, outro ali, a cada ano ou dois, escrevia um poema e assim foi até a publicação do livro. Ou seja, ele passou 25 anos escrevendo!

Ele demorou todo esse tempo porque não tinha certeza, não sabia se iria conseguir publicar o seu livro. Eu estava na mesma situação, esperando o destino dizer quando seria a “Hora”, e ela chegou.

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